Bom texto que remete a um bom debate referente as diferenças entre alfabetização & Letramento. Este conceito empregado por Magda Soares, autora do Livro ao lado, acende uma discussão interessante no que concerne a ideia de que o conceito preconizado em sua teoria já teria sido trabalhado por Paulo Freire.
Creio que o texto seja muito rico e uma boa leitura para quem pensa a Educação como elemento de transformação das pessoas.
Creio que o texto seja muito rico e uma boa leitura para quem pensa a Educação como elemento de transformação das pessoas.
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: CAMINHOS E DESCAMINHOS
Magda Soares
Um olhar histórico sobre a
alfabetização escolar no Brasil revela uma trajetória de sucessivas mudanças
conceituais e, consequentemente, metodológicas. Atualmente, parece que de novo
estamos enfrentando um desses momentos de mudança – é o que prenuncia o
questionamento a que vêm sendo submetidos os quadros conceituais e as práticas
deles decorrentes que prevaleceram na área da alfabetização nas últimas três décadas:
pesquisas que vêm identificando problemas nos processos e resultados da alfabetização
de crianças no contexto escolar, insatisfações e inseguranças entre alfabetizadores,
perplexidade do poder público e da população diante da persistência do fracasso
da escola em alfabetizar, evidenciada por avaliações nacionais e estaduais, vêm
provocando críticas e motivando propostas de reexame das teorias e práticas atuais
de alfabetização. Um momento como este é, sem dúvida, desafiador,
porque estimula a revisão dos caminhos já trilhados e a busca de novos
caminhos, mas é também ameaçador, porque pode conduzir a uma rejeição simplista
dos caminhos trilhados e a propostas de solução que representem desvios para
indesejáveis descaminhos. Este texto pretende discutir esses caminhos e
descaminhos, de que se falará mais explicitamente no tópico final; a este
tópico final se chegará por dois outros que o fundamentam e justificam: um
primeiro que busca esclarecer e relacionar os conceitos de alfabetização e
letramento, e um segundo que pretende encontrar, nas relações entre esses dois
processos, explicações para os caminhos e descaminhos que vimos percorrendo,
nas últimas décadas, na área da alfabetização.
Alfabetização, letramento:
conceitos
Letramento é palavra e conceito
recentes, introduzidos na linguagem da educação e das ciências linguísticas há
pouco mais de duas décadas; seu surgimento pode ser interpretado como decorrência
da necessidade de configurar e nomear comportamentos e práticas sociais na
área da leitura e da escrita que ultrapassem o domínio do sistema alfabético e
ortográfico, nível de aprendizagem da língua escrita perseguido,
tradicionalmente, pelo processo de
alfabetização. Esses comportamentos e práticas sociais de
leitura e de escrita foram adquirindo visibilidade e importância à medida que a
vida social e as atividades profissionais foram-se tornando cada vez mais
centradas na e dependentes da língua escrita,revelando a insuficiência de
apenas alfabetizar – no sentido tradicional – a criança ou o adulto.
Em um primeiro momento, essa visibilidade se traduziu ou numa adjetivação da
palavra alfabetização
– alfabetização funcional tornou-se
expressão bastante difundida – ou em tentativas de ampliação do significado de Alfabetização
alfabetizar, por meio de afirmações como “alfabetização não é apenas aprender a
ler e a escrever”, “alfabetizar é muito mais que apenas ensinar a codificar e decodificar”, e
outras semelhantes. A insuficiência desses recursos para
criar objetivos e procedimentos de ensino e de aprendizagem que
efetivamente ampliassem o significado de alfabetização, alfabetizar,alfabetizado
é que pode justificar o surgimento da palavra letramento, consequência da
necessidade de destacar e claramente configurar, nomeando-os, comportamentos e
práticas de uso do sistema de escrita, em situações sociais em que a leitura
e/ou a escrita estejam envolvidas.Entretanto, provavelmente devido ao fato de o
conceito de letramento ter sua origem numa ampliação do conceito de alfabetização,
esses dois processos têm sido frequentemente confundidos e até mesmo
fundidos. Pode-se admitir que, no plano conceitual, talvez a distinção
entre alfabetização e letramento não fosse
necessária, bastando que se ressignificasse o conceito de alfabetização (como sugeriu
Emilia Ferreiro em recente entrevista concedida à revista Nova Escola, n.162,
maio 2003); no plano pedagógico, porém, a distinção torna-se conveniente,embora
seja também imperativamente conveniente que, ainda que distintos, os dois
processos sejam reconhecidos como indissociáveis e interdependentes.Assim,
por um lado, é necessário reconhecer que alfabetização – entendida como a
aquisição do sistema convencional de escrita – distingue-se de letramento –entendido
como o desenvolvimento de comportamentos e habilidades de uso competente da
leitura e da escrita em práticas sociais: distinguem-se tanto
em relação aos
Objetos de conhecimento quanto em
relação aos processos cognitivos e linguísticos de aprendizagem e, portanto,
também de ensino desses diferentes objetos – isso explica por que é conveniente
a distinção entre os dois processos.Por outro lado, é necessário também
reconhecer que, embora distintos,alfabetização e letramento são
interdependentes e indissociáveis: a alfabetização só tem sentido quando
desenvolvida no contexto de práticas sociais de leitura e de escrita e por
meio dessas práticas, ou seja: em um contexto de letramento e por meio de
atividades de letramento; este, por sua vez, só pode desenvolver-se na dependência
da e por meio da aprendizagem do sistema de escrita.Distinção, mas
indissociabilidade e interdependência – que consequências tem isso para a
aprendizagem da língua escrita na escola?
Aprendizagem da língua
escrita: alfabetização e/ou letramento?
Uma análise das mudanças
conceituais e metodológicas ocorridas ao longo da história do ensino da língua
escrita no início da escolarização revela que, até os anos 80, o objetivo maior
era a alfabetização (tal como acima definida), isto é,enfatizava-se
fundamentalmente a aprendizagem do sistema convencional da escrita. Em
torno desse objetivo principal, métodos de alfabetização alternaram-se em
um movimento pendular: ora a opção pelo princípio da síntese, segundo o qual a
alfabetização deve partir das unidades menores da língua – dos
fonemas, das sílabas – em direção às unidades maiores – à palavra, à frase, ao
texto (método fônico, método silábico); ora a opção pelo princípio da análise,
segundo o qual a alfabetização deve, ao contrário, partir das unidades maiores
e portadoras de sentido – a palavra, a frase, o texto, em direção às unidades
menores (método da palavração, método da sentenciação, método global). Em
ambas as opções,porém, a meta sempre foi a aprendizagem do sistema alfabético e
ortográfico da escrita; embora se possa identificar, na segunda opção, uma
preocupação também com o Sentido veiculado pelo código, seja no nível do texto
(método global), seja no nível da palavra ou da sentença (método da palavração,
método da sentenciação),estes – textos, palavras, sentenças – são postos a
serviço da aprendizagem do sistema de escrita: palavras são intencionalmente
selecionadas para servir à sua decomposição em sílabas e fonemas, sentenças e
textos são artificialmente construídos, com rígido controle léxico e
morfossintático, para servir à sua decomposição em palavras, sílabas,
fonemas.Assim, pode-se dizer que até os anos 80 a alfabetização escolar no
Brasil caracterizou-se por uma alternância entre métodos sintéticos e métodos
analíticos,sempre, porém, com o mesmo pressuposto – o de que a criança, para
aprender o sistema de escrita, dependeria de estímulos externos
cuidadosamente selecionados ou artificialmente construídos, e também sempre com o
mesmo objetivo – o domínio desse sistema, considerado condição é pré-requisito
para que a criança desenvolvesse habilidades de uso da leitura e da escrita,
isto é: primeiro, aprender a ler e a escrever, verbos nesta etapa
considerados intransitivos, para só depois de vencida essa etapa atribuir
complementos a esses verbos: ler textos, livros,escrever estórias, cartas...Nos
anos 80, a perspectiva psicogenética da aprendizagem da língua
escrita,divulgada entre nós sobretudo pela obra e pela atuação formativa de
Emilia Ferreiro, sob a denominação de “construtivismo”, trouxe uma
significativa mudança de pressupostos e objetivos na área da alfabetização,
porque alterou fundamentalmente a concepção do processo de aprendizagem e apagou
a distinção entre aprendizagem do sistema de escrita e práticas efetivas de
leitura e de escrita.Essa mudança paradigmática permitiu identificar e
explicar o processo através do qual a criança constrói o conceito de língua
escrita como um sistema de representação dos sons da fala por sinais gráficos,
isto é, o processo através do qual a criança se torna alfabética,e, por outro
lado, e como consequência, sugeriu as condições em que mais adequadamente esse
processo se desenvolve, isto é,revelou o papel fundamental que tem, para o
processo de conceitualização da língua escrita, uma interação intensa e diversificada
da criança com práticas e materiais reais de leitura e de escrita.Entretanto, o
foco no processo de conceitualização da língua escrita pela criança e a ênfase
na importância de sua interação com práticas de leitura e de escrita como meio
para provocar e motivar esse processo têm subestimado, na prática escolar da
aprendizagem inicial da língua escrita, o ensino sistemático das relações entre
a fala e a escrita, de que se ocupa a alfabetização, tal como anteriormente
definida. Como consequência de o construtivismo ter evidencia dos processos
espontâneos de compreensão da escrita pela criança, ter condenado os métodos
que enfatizavam o ensino direto e explícito do sistema de escrita e, sendo fundamentalmente
uma teoria psicológica, e não pedagógica, não ter proposto uma metodologia de
ensino, os professores foram levados a supor que, a despeito de sua natureza
convencional e frequentemente arbitrária, as relações entre a fala e a escrita
seriam construídas pela criança de forma incidental e assistemática, como decorrência
natural de sua interação com numerosas e variadas práticas de leitura e de
escrita, ou seja, através de atividades de letramento, prevalecendo, pois,
estas sobre as atividades de alfabetização. É, sobretudo essa ausência de
ensino direto, explícito e sistemático da transferência da cadeia sonora da
fala para a forma gráfica da escrita que tem motivado as críticas que
atualmente vêm sendo feitas ao construtivismo, e é ela que explica por que vêm
surgindo, surpreendentemente,propostas de retorno a um
método fônico como solução para
os problemas que vimos enfrentando na aprendizagem inicial da língua escrita
pelas crianças.No entanto, não é retornando a um passado já superado e negando
avanços teóricos incontestáveis que esses problemas serão esclarecidos e
resolvidos. Por outro lado, ignorar ou recusar a crítica aos atuais
pressupostos teóricos e a insuficiência das práticas que deles têm decorrido
resultará certamente em mantê-los inalterados e persistentes. Ou seja: o
momento é de procurar caminhos e recusar descaminhos.
Caminhos e descaminhos
A aprendizagem da língua escrita
tem sido objeto de pesquisa e estudo de várias ciências nas últimas décadas,
cada uma delas privilegiando uma das facetas dessa aprendizagem; para citar as
mais salientes: a faceta fônica, que envolve o desenvolvimento da consciência
fonológica, imprescindível para que a criança tome consciência da fala
como um sistema de sons e compreenda o sistema de escrita como um sistema de
representação desses sons, e a aprendizagem das relações fonema-grafema e
demais convenções de transferência da forma sonora da fala para a forma gráfica
da escrita; a faceta da leitura fluente, que exige o reconhecimento holístico
de palavras e sentenças; a faceta da leitura compreensiva, que supõe ampliação
de vocabulário e desenvolvimento de habilidades como interpretação, avaliação,
inferência, entre outras; a faceta da identificação e uso adequado das
diferentes funções da escrita, dos diferentes portadores de texto, dos diferentes tipos e
gêneros de texto... Fundamentam cada uma dessas facetas teorias de
aprendizagem, princípios fonéticos e fonológicos,linguísticos,
psicolinguísticos, sociolinguísticos, teorias da leitura, teorias da produção textual,
teorias do texto e do discurso... Consequentemente, cada uma dessas
facetas exige metodologia de ensino específica, de acordo com sua natureza,
algumas dessas metodologias caracterizadas por ensino direto e explícito, como
é o caso da faceta para a qual se volta a alfabetização, outras por ensino
muitas vezes incidental e indireto, porque dependente das possibilidades e motivações
das crianças, bem como das circunstâncias e contexto em que se realize a
aprendizagem, como é caso das facetas que se caracterizam como de letramento.A
tendência, porém, tem sido privilegiar, na aprendizagem inicial da língua escrita,
apenas uma de suas várias facetas e, consequentemente, apenas uma metodologia:
assim fazem os métodos hoje considerados como “tradicionais” que,como já foi
dito, voltam-se predominantemente para a faceta fônica, isto é, para o ensino e
a aprendizagem do sistema de escrita; por outro lado, assim também tem feito o
chamado “construtivismo”, que se volta predominantemente para as facetas referentes
ao letramento, privilegiando o envolvimento da criança com a escrita em suas
diferentes funções, seus diferentes portadores, com os muitos tipos e gêneros de
texto. No entanto, os conhecimentos que atualmente esclarecem
tanto os processos de aprendizagem quanto os objetos da aprendizagem da
língua escrita, e as relações entre aqueles e estes, evidenciam que privilegiar
uma ou algumas facetas, subestimando ou ignorando outras, é um equívoco, um descaminho
no ensino e aprendizagem da língua escrita, mesmo em sua etapa inicial – talvez
por isso temos sempre fracassado nesse ensino e aprendizagem; o caminho para
esse ensino e aprendizagem é a articulação de conhecimentos e metodologias fundamentados
em diferentes ciências, e sua tradução em uma prática docente que integre as
várias facetas, isto é, que articule a aquisição do sistema de escrita, que é
favorecida por ensino direto, explícito e ordenado, aqui compreendido como sendo
o processo de alfabetização, com o desenvolvimento de habilidades e comportamentos
de uso competente da língua escrita nas práticas sociais de leitura e
de escrita, aqui compreendido como sendo o processo de letramento. A
utilização, acima, dos verbos integrar, articular retoma a afirmação anteriormente
feita de que os dois processos – alfabetização e letramento – são, no estado
atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua escrita, indissociáveis,
simultâneos e interdependentes: a criança alfabetiza-se, isto é, constrói seu
conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita, em situações
de Letramento, isto é, no contexto de e por meio de interação com material
escrito real, e não artificialmente construído, e de sua participação em práticas
sociais de leitura e de escrita; por outro lado, a criança desenvolve habilidades
e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais que a
envolvem no contexto do , por meio do e em
dependência do processode aquisição do sistema alfabético e ortográfico da escrita. Este
alfabetizar letrando, ou letrar alfabetizando, pela integração e
articulação das várias facetas do processo de aprendizagem inicial da língua
escrita, é, sem dúvida, o Caminho para a superação dos problemas que vimos enfrentando
nesta etapa da escolarização; descaminhos serão tentativas de voltar a
privilegiar esta ou aquela faceta, como se fez no passado, como se faz hoje,
sempre resultando em fracasso, este reiterado fracasso da escola brasileira em
dar às crianças acesso efetivo e competente ao mundo da escrita.
(Revista Pátio, n. 29, fevereiro de 2004)
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