Mas
o que são as Cotas? De onde vêm? Qual o seu fundamento legal e ético? Qual o
papel ou função que a implementação das mesmas no Brasil pode alterar a sorte
dos segmentos sociais mais espoliados ou impedidos de ter direitos em razão da
discriminação por que passam?
De
início, uma coisa é certa: as cotas, como são denominadas certas políticas
públicas mais radicais objetivando a concretização da igualdade material,
nasceram no bojo ações afirmativas, mas com essas não se confundem. É nesse
sentido, que o prof. Jorge da Silva, da UERJ, é enfático ao dizer que a ação
afirmativa não “é simplesmente o estabelecimento de ‘quotas’ percentuais para
negros”. (Silva; 2001; p. 28). Necessário se faz, pois, para falamos das cotas,
antes explicarmos o que são as ações afirmativas.
Pois
bem: Ações afirmativas.
Originariamente,
as ações afirmativas foram implementadas pelo governo dos Estados Unidos da
América, a partir de meados do século XX, mormente com a
promulgação das leis dos direitos civis (1964), e atingirem o seu ápice após
intensa pressão dos grupos organizados da sociedade civil, especialmente os
denominados “movimentos negros” (1), de variada forma de autuação, capitaneados
por lideranças como Martin Luther King e Malcon X, ou grupos radicais como os
"Panteras Negras", na luta pelos direitos civis dos afro-americanos.
Daí esse conceito influenciou a Europa, onde tomou o nome de discriminação
positiva.
Em
função das continuadas reivindicações e concernentes ao princípio moral
fundamental da não discriminação, os argumentos jurídicos combinados com o
movimento social foram capazes de efetuar profunda mudança nas leis e atitudes
norte-americanas. Em 1957, 1960, 1964 e 1965, o Congresso dos EUA promulgou
leis dos direitos civis. As ações afirmativas requeriam que os empregadores
tomassem medidas para acabar com as práticas discriminatórias da política de
pessoal e dali em diante adotar todas as decisões sobre emprego numa base
neutra em relação à raça.
Estas
medidas incluíam a eliminação do quase nepotismo das redes de recrutamento, a
eliminação de qualquer inclinação racial nos testes para emprego, a busca de
empregados qualificados tanto em comunidades negras quanto brancas e, de um
modo geral, a colocação das oportunidades de emprego e promoção ao alcance dos
candidatos negros. Também requeriam que fossem tomadas medidas compensatórias
para aqueles contra os quais os empregadores tivessem feito discriminação, por
meio da concessão de empregos ou promoções ou ainda indenizações. As políticas
de ação afirmativa foram implementadas no âmbito do mercado de trabalho, na
educação superior e nos contratos governamentais.
Ellis
Cashmore, em seu Dicionário de relações étnicas e raciais, no verbete referente à ação
afirmativa, diz que essa “visa ir além da tentativa de garantir igualdade de
oportunidades individuais ao tornar crime a discriminação, e tem como
beneficiários os membros de grupos que enfrentam preconceitos”. (Cashmore;
2000; p. 31).
Joaquim
B. Barbosa Gomes, membro do Ministério Público Federal brasileiro, observa que
as ações afirmativas “Consistem em políticas públicas (e também privadas)
voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à
neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de
origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por
seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam
a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo
cultural, estrutural, enraizada na sociedade”. (Gomes; 2001; pp 6-7). (2).
O mesmo jurista, para fins
classificatórios, aponta que nos EUA “as ações afirmativas são fruto de
decisões políticas oriundas do Poder executivo, com o apoio, a vigilância e a
sustentação do Poder Legislativo; do Poder Judiciário, que além de apôr sua
chancela de legitimidade aos programas elaborados pelos outros Poderes, concebe
e implementa ele próprio medidas de igual natureza; e pela iniciativa privada”. (Op. cit. p. 53).
É
importante ressaltar também que o tema das ações afirmativas, mesmo nos EUA,
não é consensual. (3).
Analisando
a experiência alienígena na implementação das ações afirmativas, com vistas à
sua aplicação no Brasil, o filósofo Renato Janine Ribeiro, entende que estas –
se as medidas forem temporárias e bem orientadas -, como correção de rota, são
"um dos melhores meios, mas não necessariamente o único, ou sequer o
melhor em si – apenas o melhor num arsenal de meios não revolucionários".
(Ribeiro; 2000; p. 29).
E
o sistema de cotas.
As
cotas são uma segunda etapa das ações afirmativas. Constatada nos EUA a
ineficácia dos procedimentos clássicos de combate à discriminação, deu-se
início a um processo de alteração conceitual das ações afirmativas, que passou
a ser associado à ideia, mais ousada, de realização da igualdade de
oportunidades através da imposição de cotas rígidas de acesso de representantes
de minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a instituições
educacionais. Data também desse período a vinculação entre ação afirmativa e o
atingimento de certas metas estatísticas concernentes à presença de negros e
mulheres num determinado setor do mercado de trabalho ou numa determinada
instituição de ensino.
Mas
cumpre ainda dizer, que além do sistema de cotas, há outras opções que podem
ser consideradas para a efetivação das ações afirmativas: o método do
estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais
(como instrumento de motivação do setor privado). De crucial importância é o
uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é
da tradição brasileira, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de
emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos
efeitos da discriminação de cunho histórico.
Porém,
alerta o citado Joaquim B. Barbosa Gomes que falta ao Direito brasileiro um
maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na
implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase exclusivamente do
sistema de cotas, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um
outro critério inquestionavelmente objetivo (4), deve ser objeto de uma
utilização marcadamente marginal.
O fato é que o racismo antinegro existente no Brasil foi dissimulado
pelo mito da democracia racial, acabando por inviabilizar também o entendimento
jurídico do problema. No Brasil, o racismo desenvolveu-se de modo diferente que
em outros lugares, como nos EUA e África do Sul, por exemplo. Está presente nas
práticas sociais e nos discursos, mas sem ser reconhecido pelo sistema jurídico
e sendo negado pelo discurso não racialista da nacionalidade.
O Estado liberal que se implantaria em decorrência do advento da Independência (1822),
garante, a um só tempo, as liberdades individuais dos senhores e das classes
dominantes e a continuidade da escravidão. Depois da abolição, em 1888, tal
dualidade de tratamento diante da lei estende-se ao sistema de clientelismo e
ao colonato, que substituiu a escravidão. Ou seja, as liberdades e os direitos
individuais constitucionalmente outorgados não são garantidos na prática
social; as práticas de discriminação e de desigualdade de tratamento continuam
sendo a regra das relações sociais. Mas, por outro lado, as elites brasileiras
tiveram problemas em aceitar integralmente o racismo como doutrina e acabaram
por rejeitá-lo por completo, transformando o não racialismo e a miscigenação
cultural e biológica em ideais nacionais, que procuram integrar todos os
indivíduos no Estado Nação. Em vista disso, os brancos, no Brasil, foram
definidos da maneira a mais inclusiva possível, de modo a abarcar todos os
mestiços mais próximos das características somáticas européias, e mesmo, no
extremo, a incluir todos que usufruem dos privilégios da cidadania.
A
exclusão do afro-brasileiro tem sido debatida em diversas análises de natureza
sociológica e antropológica, e é até mesmo constatável a partir da simples
visualização de dados estatísticos (indicadores sócio-econômicos do IPEA, IBGE,
PNUD-ONU etc).
Algumas
conclusões de relatórios das organizações acima citadas descrevem a clara
posição de inferioridade do afro-brasileiro no mercado de trabalho e na
educação. As análises estatísticas das relações raciais no Brasil ratificam o
quanto o escravismo influenciou na estratificação social, sobretudo na
concentração racial da riqueza.
Por
isso, as ações afirmativas e as cotas são dois dos principais meios que podem
ser utilizados como instrumentos capazes de propiciar mobilidade social ao
afro-brasileiro, afim de integrá-lo econômica e socialmente aos demais membros
da sociedade inclusiva, sem olvidar outras formas mais fecundas de obter
justiça social. Porém, não esqueçamos que essas propostas deverão vir
acompanhadas de outras medidas de cunho social, tais como: melhorias na
qualidade do ensino público fundamental; políticas de redistribuição de renda;
reforma tributária; reforma agrária etc.
Mesmo
diante do quadro apresentado, certamente haverão alguns "puristas",
especialmente “o branco receoso de perder nacos dos privilégios multisseculares
de que desfrutam ou os membros do establishment jurídico”, que irão levantar inúmeras questões em
desfavor da implementação de um sistema de cotas em nosso país, especialmente,
porque o aparato legal brasileiro não muito é explícito nesse sentido.
Aliás,
contra a luta anti-racista no Brasil, basicamente temos os seguintes argumentos
brandidos pelos nossos liberais, progressistas e nacionalistas: (a) que o
racismo pertence ao passado de escravidão e segregação legal e que, portanto,
não é algo importante no presente; (b) que a melhor maneira de enfrentar o
racismo sobrevivente é ignorá-lo, posto que se trata apenas de resquício de um
passado que será inelutavelmente superado pelo modo de vida moderno; (c) que a
melhor tática para combater o racismo é apagar de nossas mentes a noção de
"raça", proscrevendo-a; (d) que o melhor que um negro tem a fazer é
agir como um indivíduo, desembaraçando-se dos familiares ou vizinhos que
ficaram para trás; (e) que qualquer política pública, para ser anti-racista,
precisa ser universalista e color-blind.
Mas
esses argumentos perdem forças. O legislador pátrio, mesmo não as denominando
de cotas ou ações afirmativas, já editou diversas leis e outros tipos
normativos, que reconhecem o direito à diferença de tratamento legal para
diversos grupos vulneráveis. Dentre outros, destacamos:
I. Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art.
354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais
ou coletivas.
II. Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que estabelece, em seu
art. 373-A, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções
responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres.
III. Lei 8.112/90, que prescreve, em art. 5o,
§ 2º, cotas de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público
civil da união.
IV. Lei 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, cotas para
os portadores de deficiência no setor privado.
V. Lei 8.666/93, que preceitua, em art. 24, inc. XX, a
inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de
portadores de deficiência.
VI. Lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, § 2º,
cotas para mulheres nas candidaturas partidárias. (5).
Acrescente-se
que recentemente as polêmicas sobre a implementação de ações afirmativas e
cotas em nosso país aumentaram, notadamente, quando foram editadas leis
estaduais reservando cotas para alunos negros e pardos nas Universidades
públicas. Por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, a Lei nº
3708, de 9 de novembro de 2001, disciplinada pelo Decreto nº 30.766, de 04 de
março de 2002, instituiu cota de até 40%
(quarenta por cento) para a população negra e parda no acesso à Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense.
Vale
ainda notar, que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, no
seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro”, promovido pelo Tribunal
Superior do Trabalho, em 20 de novembro de 2001, proferiu uma palestra
intitulada “Óptica Constitucional - A Igualdade e as Ações Afirmativas”, onde
defendeu a constitucionalidade da implementação de ações afirmativas em favor
dos negros brasileiros.
Ainda
no mês de dezembro do mesmo ano o STF expediu edital de licitação que prevê
cota para negros nos serviços terceirizados do Tribunal. A concorrência
objetivava contratar 17 profissionais para prestação de serviços na área de jornalismo
e reserva 20% das vagas para negros. O próprio governo federal vem fazendo
alguns esforços para a implementação de ações afirmativas para os
afro-brasileiros, como é o caso do Ministério da Reforma Agrária e, mais
recentemente, do Ministério das Relações Exteriores.
Por
fim, ressaltamos que esta agenda genérica ou qualquer outra, para ter alguma
viabilidade, precisa ser acordada e negociada, a partir de um amplo arco de
alianças políticas.
O
texto foi produzido resumindo de forma breve o artigo do Prof. Luiz Fernando Martins da Silva, a forma reduzida deu-se em
função da dinâmica deste veículo. Contudo, abaixo disponibilizo a versão
original do mesmo.
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