3.4.12

Cotas ou ações afirmativas? Como devo chamá-las?


Mas o que são as Cotas? De onde vêm? Qual o seu fundamento legal e ético? Qual o papel ou função que a implementação das mesmas no Brasil pode alterar a sorte dos segmentos sociais mais espoliados ou impedidos de ter direitos em razão da discriminação por que passam?

De início, uma coisa é certa: as cotas, como são denominadas certas políticas públicas mais radicais objetivando a concretização da igualdade material, nasceram no bojo ações afirmativas, mas com essas não se confundem. É nesse sentido, que o prof. Jorge da Silva, da UERJ, é enfático ao dizer que a ação afirmativa não “é simplesmente o estabelecimento de ‘quotas’ percentuais para negros”. (Silva; 2001; p. 28). Necessário se faz, pois, para falamos das cotas, antes explicarmos o que são as ações afirmativas.

Pois bem: Ações afirmativas.
Originariamente, as ações afirmativas foram implementadas pelo governo dos Estados Unidos da América, a partir de meados do século XX, mormente com a promulgação das leis dos direitos civis (1964), e atingirem o seu ápice após intensa pressão dos grupos organizados da sociedade civil, especialmente os denominados “movimentos negros” (1), de variada forma de autuação, capitaneados por lideranças como Martin Luther King e Malcon X, ou grupos radicais como os "Panteras Negras", na luta pelos direitos civis dos afro-americanos. Daí esse conceito influenciou a Europa, onde tomou o nome de discriminação positiva.
Em função das continuadas reivindicações e concernentes ao princípio moral fundamental da não discriminação, os argumentos jurídicos combinados com o movimento social foram capazes de efetuar profunda mudança nas leis e atitudes norte-americanas. Em 1957, 1960, 1964 e 1965, o Congresso dos EUA promulgou leis dos direitos civis. As ações afirmativas requeriam que os empregadores tomassem medidas para acabar com as práticas discriminatórias da política de pessoal e dali em diante adotar todas as decisões sobre emprego numa base neutra em relação à raça.
Estas medidas incluíam a eliminação do quase nepotismo das redes de recrutamento, a eliminação de qualquer inclinação racial nos testes para emprego, a busca de empregados qualificados tanto em comunidades negras quanto brancas e, de um modo geral, a colocação das oportunidades de emprego e promoção ao alcance dos candidatos negros. Também requeriam que fossem tomadas medidas compensatórias para aqueles contra os quais os empregadores tivessem feito discriminação, por meio da concessão de empregos ou promoções ou ainda indenizações. As políticas de ação afirmativa foram implementadas no âmbito do mercado de trabalho, na educação superior e nos contratos governamentais.
Ellis Cashmore, em seu Dicionário de relações étnicas e raciais, no verbete referente à ação afirmativa, diz que essa “visa ir além da tentativa de garantir igualdade de oportunidades individuais ao tornar crime a discriminação, e tem como beneficiários os membros de grupos que enfrentam preconceitos”. (Cashmore; 2000; p. 31).
Joaquim B. Barbosa Gomes, membro do Ministério Público Federal brasileiro, observa que as ações afirmativas “Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade”. (Gomes; 2001; pp 6-7). (2).
         O mesmo jurista, para fins classificatórios, aponta que nos EUA “as ações afirmativas são fruto de decisões políticas oriundas do Poder executivo, com o apoio, a vigilância e a sustentação do Poder Legislativo; do Poder Judiciário, que além de apôr sua chancela de legitimidade aos programas elaborados pelos outros Poderes, concebe e implementa ele próprio medidas de igual natureza; e pela iniciativa privada”. (Op. cit. p. 53).
É importante ressaltar também que o tema das ações afirmativas, mesmo nos EUA, não é consensual. (3).
Analisando a experiência alienígena na implementação das ações afirmativas, com vistas à sua aplicação no Brasil, o filósofo Renato Janine Ribeiro, entende que estas – se as medidas forem temporárias e bem orientadas -, como correção de rota, são "um dos melhores meios, mas não necessariamente o único, ou sequer o melhor em si – apenas o melhor num arsenal de meios não revolucionários". (Ribeiro; 2000; p. 29).

E o sistema de cotas.
As cotas são uma segunda etapa das ações afirmativas. Constatada nos EUA a ineficácia dos procedimentos clássicos de combate à discriminação, deu-se início a um processo de alteração conceitual das ações afirmativas, que passou a ser associado à ideia, mais ousada, de realização da igualdade de oportunidades através da imposição de cotas rígidas de acesso de representantes de minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a instituições educacionais. Data também desse período a vinculação entre ação afirmativa e o atingimento de certas metas estatísticas concernentes à presença de negros e mulheres num determinado setor do mercado de trabalho ou numa determinada instituição de ensino.
Mas cumpre ainda dizer, que além do sistema de cotas, há outras opções que podem ser consideradas para a efetivação das ações afirmativas: o método do estabelecimento de preferências, o sistema de bônus e os incentivos fiscais (como instrumento de motivação do setor privado). De crucial importância é o uso do poder fiscal, não como mecanismo de aprofundamento da exclusão, como é da tradição brasileira, mas como instrumento de dissuasão da discriminação e de emulação de comportamentos (públicos e privados) voltados à erradicação dos efeitos da discriminação de cunho histórico.
Porém, alerta o citado Joaquim B. Barbosa Gomes que falta ao Direito brasileiro um maior conhecimento das modalidades e das técnicas que podem ser utilizadas na implementação de ações afirmativas. Entre nós, fala-se quase exclusivamente do sistema de cotas, mas esse é um sistema que, a não ser que venha amarrado a um outro critério inquestionavelmente objetivo (4), deve ser objeto de uma utilização marcadamente marginal.
O fato é que o racismo antinegro existente no Brasil foi dissimulado pelo mito da democracia racial, acabando por inviabilizar também o entendimento jurídico do problema. No Brasil, o racismo desenvolveu-se de modo diferente que em outros lugares, como nos EUA e África do Sul, por exemplo. Está presente nas práticas sociais e nos discursos, mas sem ser reconhecido pelo sistema jurídico e sendo negado pelo discurso não racialista da nacionalidade.
O Estado liberal que se implantaria em decorrência  do advento da Independência (1822), garante, a um só tempo, as liberdades individuais dos senhores e das classes dominantes e a continuidade da escravidão. Depois da abolição, em 1888, tal dualidade de tratamento diante da lei estende-se ao sistema de clientelismo e ao colonato, que substituiu a escravidão. Ou seja, as liberdades e os direitos individuais constitucionalmente outorgados não são garantidos na prática social; as práticas de discriminação e de desigualdade de tratamento continuam sendo a regra das relações sociais. Mas, por outro lado, as elites brasileiras tiveram problemas em aceitar integralmente o racismo como doutrina e acabaram por rejeitá-lo por completo, transformando o não racialismo e a miscigenação cultural e biológica em ideais nacionais, que procuram integrar todos os indivíduos no Estado Nação. Em vista disso, os brancos, no Brasil, foram definidos da maneira a mais inclusiva possível, de modo a abarcar todos os mestiços mais próximos das características somáticas européias, e mesmo, no extremo, a incluir todos que usufruem dos privilégios da cidadania.
A exclusão do afro-brasileiro tem sido debatida em diversas análises de natureza sociológica e antropológica, e é até mesmo constatável a partir da simples visualização de dados estatísticos (indicadores sócio-econômicos do IPEA, IBGE, PNUD-ONU etc).
Algumas conclusões de relatórios das organizações acima citadas descrevem a clara posição de inferioridade do afro-brasileiro no mercado de trabalho e na educação. As análises estatísticas das relações raciais no Brasil ratificam o quanto o escravismo influenciou na estratificação social, sobretudo na concentração racial da riqueza.
Por isso, as ações afirmativas e as cotas são dois dos principais meios que podem ser utilizados como instrumentos capazes de propiciar mobilidade social ao afro-brasileiro, afim de integrá-lo econômica e socialmente aos demais membros da sociedade inclusiva, sem olvidar outras formas mais fecundas de obter justiça social. Porém, não esqueçamos que essas propostas deverão vir acompanhadas de outras medidas de cunho social, tais como: melhorias na qualidade do ensino público fundamental; políticas de redistribuição de renda; reforma tributária; reforma agrária etc.
Mesmo diante do quadro apresentado, certamente haverão alguns "puristas", especialmente “o branco receoso de perder nacos dos privilégios multisseculares de que desfrutam ou os membros do establishment jurídico”, que irão levantar inúmeras questões em desfavor da implementação de um sistema de cotas em nosso país, especialmente, porque o aparato legal brasileiro não muito é explícito nesse sentido.
Aliás, contra a luta anti-racista no Brasil, basicamente temos os seguintes argumentos brandidos pelos nossos liberais, progressistas e nacionalistas: (a) que o racismo pertence ao passado de escravidão e segregação legal e que, portanto, não é algo importante no presente; (b) que a melhor maneira de enfrentar o racismo sobrevivente é ignorá-lo, posto que se trata apenas de resquício de um passado que será inelutavelmente superado pelo modo de vida moderno; (c) que a melhor tática para combater o racismo é apagar de nossas mentes a noção de "raça", proscrevendo-a; (d) que o melhor que um negro tem a fazer é agir como um indivíduo, desembaraçando-se dos familiares ou vizinhos que ficaram para trás; (e) que qualquer política pública, para ser anti-racista, precisa ser universalista e color-blind.
Mas esses argumentos perdem forças. O legislador pátrio, mesmo não as denominando de cotas ou ações afirmativas, já editou diversas leis e outros tipos normativos, que reconhecem o direito à diferença de tratamento legal para diversos grupos vulneráveis. Dentre outros, destacamos:
I.                   Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas.
II.                Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que estabelece, em seu art. 373-A, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres.
III.              Lei 8.112/90, que prescreve, em art. 5o, § 2º, cotas de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da união.
IV.              Lei 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, cotas para os portadores de deficiência no setor privado.
V.                 Lei 8.666/93, que preceitua, em art. 24, inc. XX, a inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de portadores de deficiência.
VI.              Lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, § 2º, cotas para mulheres nas candidaturas partidárias. (5).
          
Acrescente-se que recentemente as polêmicas sobre a implementação de ações afirmativas e cotas em nosso país aumentaram, notadamente, quando foram editadas leis estaduais reservando cotas para alunos negros e pardos nas Universidades públicas. Por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro, a Lei nº 3708, de 9 de novembro de 2001, disciplinada pelo Decreto nº 30.766, de 04 de março de 2002, instituiu cota de até 40% (quarenta por cento) para a população negra e parda no acesso à Universidade do Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense.
Vale ainda notar, que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, no seminário “Discriminação e Sistema Legal Brasileiro”, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho, em 20 de novembro de 2001, proferiu uma palestra intitulada “Óptica Constitucional - A Igualdade e as Ações Afirmativas”, onde defendeu a constitucionalidade da implementação de ações afirmativas em favor dos negros brasileiros.
Ainda no mês de dezembro do mesmo ano o STF expediu edital de licitação que prevê cota para negros nos serviços terceirizados do Tribunal. A concorrência objetivava contratar 17 profissionais para prestação de serviços na área de jornalismo e reserva 20% das vagas para negros. O próprio governo federal vem fazendo alguns esforços para a implementação de ações afirmativas para os afro-brasileiros, como é o caso do Ministério da Reforma Agrária e, mais recentemente, do Ministério das Relações Exteriores.
Por fim, ressaltamos que esta agenda genérica ou qualquer outra, para ter alguma viabilidade, precisa ser acordada e negociada, a partir de um amplo arco de alianças políticas.

O texto foi produzido resumindo de forma breve o artigo do Prof. Luiz Fernando Martins da Silva, a forma reduzida deu-se em função da dinâmica deste veículo. Contudo, abaixo disponibilizo a versão original do mesmo.


Artigo Original:


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