24.5.11

Resistência ao “Amor à Verdade”

Com o presente texto pretendo inaugurar um campo que à muito vinha formulando em meus trabalhos. A contribuição dos estudos de Freud na Educação. Certamente, que trata-se de tema específico que dada a sua relevância exige um maior investimento para acompanhá-lo. Creio que possa contribuir com algumas pequenas contribuições, a primeira destas é o texto que se segue, de autoria do  Profº da FAE/UEMG e psicanalista Marcelo Ricardo Pereira.

Resistência ao “Amor à Verdade” é um trabalho que toca exatamente em uma questão fundamental para compreendermos as possibilidades e os limites da Educação. Par tanto, precisamos buscar etender um conceito desenvolvido por Freud, que é a Resistência, assim como sua fala sobre Amor, Verdade... Vamos ao texto;


Resistência ao “Amor à Verdade”

É comum professores anunciarem que determinado aluno é resistente a aprender, que está por sempre repetir um ato de indisciplina, desvio ou violência. A repetição parece ser algo que interroga o professor. Mas será que o sujeito resiste mesmo à aprendizagem ou ao saber? Será que ele resiste a verdades de seu desejo? Para isso, vale entender melhor a expressão freudiana de amor à verdade e percorrermos um pouco mais suas idéias sobre resistência, transferência, repetição e mestria. O texto propõe, ainda, um retorno ao acontecimento do cotidiano da prática docente, interrogando-o com base na demanda de amor transferencial, bem como no postulado hegeliano, rearticulado por Lacan, sobre o senhor e o escravo. Pretende-se, assim, refletir sobre o trabalho pedagógico calcado no amor à verdade, para além do saber formal, e desenhar saídas possíveis para o impossível de educar.

A experiência nos testemunha o abuso de interpretações imaginárias que a gramática escolar antecipa aos seus educadores. As fronteiras impostas à prática pedagógica incitam seus profissionais a tecerem, via de regra, bizarros saberes sobre comportamentos duvidosos dos alunos, sobre seus insucessos escolares, sobre a depreciação da relação pedagógica etc. Uma dessas interpretações reanimadas cotidianamente frente aos problemas ou dificuldades de aprendizagem é a da resistência. Educadores, de um modo geral, não economizam em seus discursos falas que indicam a “resistência à aprendizagem” como o fator principal do fracasso escolar de determinados alunos. Para superar essa resistências, os mesmos educadores mostram-se redentores e providenciais ao prescreverem alterações metodológicas, mudanças de postura, aproximações afetivas e outros gestos que se tornam inócuos em grande parte das vezes.

O complexo contexto social e cultural no qual se inserem os personagens pedagógicos por si mesmo já induz fatores como a resistência a emergirem na cena escolar. No entanto, passamos a interrogar a resistência com base numa modalidade radical que, dramaticamente, surge nos aspectos relacionais do discurso pedagógico. Ou ainda: que surge na descontinuidade ou no reverso de positividade desse discurso. Nesse sentido, caminhamos rumo ao desvio, antes da reflexão; rumo ao ponto de falta, antes do amor ao saber - ponto no qual o social se declina.

A psicanálise tem algo a dizer sobre a resistência (ainda que longe de assemelhar a resistência à aprendizagem ao dispositivo freudiano). No tratamento analítico, essa resistência surge como efeito da transferência sujeito-analista cuja forma é a do amor. O amor, afirma Lacan (1985), é, sem dúvida, um efeito de transferência mas em sua face de resistência. Dessa forma, estabelece-se o meio pelo qual se interrompe a comunicação do inconsciente, ou seja, pelo qual o inconsciente torna-se a fechar. Freud (1912) anuncia que o único modo de superá-la é através da elaboração e não a partir de reflexões, construções ou interpretações imaginárias. Aliás, a interpretação em análise está sempre sujeita a esse efeito de transferência, ainda que reconhecemos ser essa transferência a responsável pelo “fechamento” do sujeito ao efeito da interpretação.

Assim, o amor (sem reduzi-lo ao modelo cortês medieval, que ideologicamente impregna nossos chorosos folhetins) resiste até mesmo à interpretação, garantindo a perpetuação da transferência. Todas as associações do sujeito passam a ser tomadas pela transferência que satisfaz a resistência, amalgamando enfim o inconsciente.

A resistência à aprendizagem, embora distinta da resistência analítica, merece a meu ver alguns cotejamentos com a última, já que ambas sublinham o dispositivo da transferência.

“Aprender é aprender com alguém”, declara Kupfer (1992, p. 84), ao enfatizar que a presença de um professor, colocado numa determinada posição, pode ou não propiciar a aprendizagem. A transferência se produz quando o desejo de saber do aluno aferra-se a um elemento particular, que é a pessoa do professor. O aluno atribui, então, um sentido especial àquela figura determinada pelo desejo. O professor, por sua vez, esvaziado de seu próprio sentido, torna-se depositário de algo pertencente ao aluno, que lhe fixou um outro sentido particular e inconsciente. Há um jogo dialético do desejo que, invariavelmente, induz o professor ao impossível. De um lado, enquanto sujeito, há o desejo que o impele a ocupar o lugar de mestre; do outro, precisa renunciar a esse desejo para tornar-se um depositário esvaziado dos sentidos imprimidos por um aluno que sequer é carne de sua carne.

No entanto, o docente apodera-se desse sentido especial depositado em sua pessoa pelo aluno. Dessa posse, deriva-se um poder, pois a transferência de sentido, operada pelo desejo, é também uma transferência de poder. “O desejo transfere sentido e poder à figura do professor, que funciona como mero suporte esvaziado de seu sentido próprio enquanto pessoa” (Kupfer, 1992, p. 92). O aluno quer, supostamente, que seu professor suporte esse lugar “esvaziado” e permaneça ali onde o colocou, mas não é tão fácil. Esse professor é também um sujeito marcado pelo seu desejo inconsciente. Portanto, na posição de mestre, tenderá a abusar do lugar que ocupa, subjugando seu aluno, impondo-lhe suas próprias concepções, valores e modelos predeterminados.

Lancemos mão de alguns desvios conceituais da relação senhor-escravo, proposta teórica hegeliana rearticulada por Lacan. A missão do professor, corroborada pela estrutura mesma da educação, parece ser a de assegurar a possibilidade de sujeição do aluno à sua figura de mestre ou senhor, também aqui evocada no lugar do ideal. A relação mestre-escravo é requerida para que a educação siga ilesa seus desígnios. Há um saber que, muito anterior à apropriação pelo mestre, o escravo o possui inexoravelmente, um saber-fazer. O mestre opera uma extração, transmutando o saber do escravo no seu próprio saber. Lacan, sempre enfático, afirma que o escravo é roubado de seu saber: “o roubo, o rapto, a subtração à escravaria, pela operação do senhor” (Lacan, 1991, p. 19). Tanto um, quanto o outro, tornam-se imbricados entre si, dependentes do ato alheio. Porém, a intersubjetividade é ilusória, pois não há aí o reconhecimento de dois desejos, mas apenas o do mestre que se afirma como o único sujeito a ser reconhecido pelo indivíduo reduzido à posição de escravo - o que desqualifica o próprio reconhecimento. Um impasse no nível do imaginário se apresenta, possível apenas de ser solucionado no nível simbólico através de sua função reguladora. Tanto o sujeito, quanto o outro buscam metaforicamente o traço estrangeiro que lhe falta: o escravo busca no mestre o significante primeiro (s1), que possa dizer de si; o mestre busca no escravo o domínio do saber-fazer (s2), único que o possui. Ambos, no entanto, não se dominam por completo, excedendo sempre uma parte (mais-gozar) rebelde, responsável pelo não sucumbe de uma força pela outra. O professor apropria de todo saber e se afirma como único sujeito a ser reconhecido pelo aluno, que é aquele quem supostamente conheceria seu próprio saber-fazer. O que se encontra em questão é a posição ocupada pelo discente que torne esse saber um saber do mestre. Daí, o docente arvora em se anunciar sabedor do que o seu discípulo oferece.

A psicanálise determina, não sem rigor, que não há a mestria pura, sempre relativizada pelo saber particular do sujeito, seja ele o escravo, seja ele o aluno. Essa descontinuidade na relação entre o escravo e o mestre gera, a meu ver, o suporte para um processo de verdade que induz um sujeito como efeito. Talvez o escravo, nessa posição, resista a um saber que o conduza a uma verdade biográfica, menos oracular, cuja síntese vivifica antes um postulado ético do que ontológico, que ressalta o axioma que Freud prediz em Análise terminável e interminável (1937), a saber, “o amor à verdade”.

Para entendermos mais exatamente a expressão amor à verdade devemos antes retornar ao próprio percurso de Freud quando reconheceu que a verdade não pode ser toda dita na palavra, que parte dela permanece indescritível por se referir ao inconsciente: “Nunca se está numa posição de descobrir a verdade toda” (Freud, 1910, p. 211). Todavia, Lacan é quem parece dar caminho mais preciso às idéias freudianas consentâneas à verdade, ao saber e aos seus efeitos de gozo. Sigamos brevemente a sua trilha. É comum professores anunciarem que determinado aluno é resistente, que está por sempre repetir um ato de indisciplina ou algum problema de aprendizagem. A repetição parece ser algo que interroga o professor ao lhe remeter ao não-saber-o-que-fazer-com-isso. Por que tanto repetem?

Lacan no Avesso da Psicanálise (1991) afirma que a repetição necessita do gozo, visa-o, pois ela se funda em um retorno do gozo. E, a cada vez que se repete, há uma perda, pois nunca há equivalência do repetido. O sujeito convoca o gozo para permanecer nessa empreitada. São modalidades que se repetem sob a forma de resistência. Se se repetem é porque visam o gozo. O saber articulado, dominado, formulado e tantas vezes defendidos por professores irados pela “resistência” alheia é também, nesse sentido, uma forma de gozo. Compartilho, dessa forma, da idéia de Lacan: “Esse saber mostra aqui a sua raiz porquanto na repetição ele vem a ser o meio do gozo na medida em que este ultrapassa os limites impostos[...]” (1991, p.46). Sou inclinado, portanto, a assentir com sua expressão que dá título a uma das passagens de seu seminário: Saber, meio de gozo.

Ora, ironicamente, um saber formal sobre a verdade só pode ser pronunciado por quem não raro ocupa o lugar de ideal cuja perfeição o autorize a tecer interpretações (imaginárias) sobre os imperfeitos - o que é impossível. Cifali (1987, p. 117-121), também retomando esse trecho da Análise terminável e interminável de Freud, afirma que profissionais que se voltam ao amor à verdade encontram-se embaraçados em um processo científico no qual não são “pontos perfeitos”, ainda que se coloque o “sujeito do ato” entre parênteses.

Tomando, entretanto, esse efeito de transferência a qual denominei de “resistência à aprendizagem” como modalidade de gozo, coloco em suspensão as afirmações que aproximam essa aprendizagem do saber. Não se trata propriamente de uma “resistência a saber”. A positividade do saber não representa necessariamente a aquisição do conhecimento. Trata-se, outrossim, de “resistência à verdade”, essa verdade como processo, cujo sujeito do desejo se extrai como efeito. Trata-se, uma vez fiel ao pensamento de Freud, de uma “resistência ao amor à verdade”: algo suplementar, casual e ambíguo que subtrairia o escravo dessa posição e o restituiria à condição de desejante. Não seria assim mais um escravo, mas um sujeito escandido com base em uma verdade, o que dissolveria seu mestre. A transferência de amor entre aluno e professor obtura, ao satisfazer a resistência, a possibilidade do aluno contabilizar o seu desejo, pois se assim fosse o lugar de professor - único desejante na relação mestre-escravo - estaria destinado à morte.

Ora, mas será sempre assim? O aluno resistirá sempre a interrogar suas verdades como sujeito de desejo para que seu professor – escolhido pelo amor de transferência – reine em sua cátedra de mestre e seja o único a desejar? Até quando esse estudante necessitará da indisciplina, do desvio, da violência, da ironia ou, na mesma ordem, do enquadramento e do conformismo para anunciar que há uma descontinuidade gritante na relação pedagógica que lhe cala o desejo?

Uma saída possível talvez seja a da utopia, como considerou Chauí (1979). Um professor ora pode existir e ora pode desaparecer, cuja permanência é fugaz porque, como seus alunos, também é uma consciência dividida que substitui o que realmente sabe por uma prática negadora de seu saber efetivo. O trabalho pedagógico calcado nesse amor à verdade enquanto desejo talvez se efetuaria quando fizesse com que a figura do estudante desapareça. Para isso, o professor precisa fazer um esforço cotidiano para que seu lugar permaneça vazio, pois seu trabalho é tornar possível o preenchimento desse lugar por todos aqueles que estão excluídos dele e que o desejam e pelo qual não poderiam desejá-lo se já estivesse preenchido por um senhor e mestre. Porque existe o lugar do professor, mas existe como lugar vazio, todos podem desejá-lo e ninguém pode preenchê-lo senão sob o risco de destruí-lo.

Referências Bibliográficas

Cifali, M. (1987). “L’infini éducatif: mise en perspectives”. In: Les trois métiers impossibles. Paris: Édition “les belles lettres”.

Chauí, M. (1979). Ideologia e Educação. Conferência: Universidade de Campinas, Campinas, SP.

Freud, S. (1910). Psicanálise silvestre. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas (vol. 11, p. 207-216). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.

Freud, S. (1912). Recordar, repetir, elaborar. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas (vol. 12, p. 193-207). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.

Freud, S. (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas (vol. 23, p. 247-308). Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1976.

Kupfer, M. C. (1992) Freud e a educação - o mestre do impossível. São Paulo, SP: Scipione.



Nenhum comentário:

Postar um comentário